A notícia de que um milhão e meio de pessoas não retornaram no prazo recomendado para receber a segunda dose da CoronaVac levanta uma questão importante sobre a eficácia e o esquema de dosagem dessa vacina: qual o nível de proteção oferecido por uma única dose?
Ou, alternativamente, qual a relação da segunda dose com a taxa de eficácia da CoronaVac?
Suponha que você queira se informar sobre isso, e faça uma busca no Google. Estes são alguns dos primeiros resultados:
Trata-se de material produzido pela agência de checagem Projeto Comprova, que foi verificado por seis veículos associados a ela e republicado pelo UOL, Estadão, e, resumido a um parágrafo, pelo site do próprio Instituto Butantan. E que está simplesmente errado.
Nos ensaios clínicos, dois critérios determinam a qualidade de uma vacina: se ela gera efeitos adversos graves, e se ela oferece proteção contra a doença, ou seja, se demonstra ser eficaz. Dizer que a segunda dose não tem relação com a eficácia é o mesmo que dizer que a segunda dose não serve para nada. Se isso fosse verdade, então pra que tomar?
O Comprova tem parceria com 28 veículos de imprensa, entre eles os maiores jornais e portais de notícia do país, emissoras de TV e rádio, e também parceria técnica e institucional com universidades, Google, Facebook.
No entanto, apesar da importância do trabalho das agências com outros tipos de apuração, este é um exemplo claro de que, quando se trata de conteúdo de ciência, a quantidade de profissionais e instituições de prestígio envolvidos não significa nada se ninguém ali tiver familiaridade suficiente com o assunto para perceber erros conceituais, contradições, e até para fazer as perguntas certas aos especialistas.
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A checagem era sobre este tuíte, escrito logo que foi divulgada a eficácia primária da CoronaVac.
(Sim, eu ainda vou aprender a centralizar essas imagens.)
O nobre deputado, com a argúcia e galhardia que lhe são peculiares… não disse coisa com coisa. Ele parece achar que a eficácia de ~50% da CoronaVac havia sido obtida com uma única dose, o que está errado, e que com duas se atingiria 100%, o que também está errado, e que, por causa disso, e/ou do interesse financeiro dos laboratórios, é que seria proposta a aplicação de duas doses, o erro apoteótico que resulta da soma daqueles outros.
Enfim.
O problema com o texto do Comprova é que os responsáveis por ele e pela sua republicação em outros lugares aparentemente não entenderam o conceito de eficácia de uma vacina, nem o motivo para a CoronaVac ser aplicada em duas doses.
O título da checagem é: “Segunda dose da CoronaVac não está relacionada à taxa de eficácia da vacina”. Mas, logo em seguida, no quadro que deveria explicar a questão: “Doses escalonadas são comuns em programas de vacinação e servem para reforçar a primeira dose.” O texto repete mais oito vezes afirmações semelhantes, como que outras vacinas “também necessitam de duas doses para a imunização total”, sem ligar os pontos. A segunda dose “reforçar” a primeira significa que, com duas doses, a vacina tem maior capacidade de estimular o sistema imunológico a identificar e combater o vírus, resultando, em proporções crescentes, em menos infecções, sintomas menos graves, menos hospitalizações, e menos mortes. O que significa exatamente que ela tem relação com a eficácia da vacina, já que “eficácia” são os dados obtidos em testes clínicos sobre a ação real dela contra a doença.
A julgar pelas respostas dos especialistas consultados, que não tocam diretamente nesse tema, o Comprova também não parece ter feito a eles perguntas pertinentes que pudessem desfazer esse equívoco. A resposta do Butantan, disponível na íntegra, é forte evidência disso.
Agora, é importante notar que tudo que foi dito sobre a segunda dose se baseava em conhecimento prévio de como as vacinas funcionam e em dados de imunogenicidade da CoronaVac. Até então não haviam sido disponibilizadas informações sobre a eficácia de uma única dose dela nos ensaios clínicos, diferente do que aconteceu com a vacina da AstraZeneca. A apresentação da Anvisa para a autorização emergencial registra isso:
A própria razão para a existência da segunda dose é um ponto mais interessante. Eu fiquei surpreso em encontrar tão pouco material sobre o desenvolvimento das vacinas na mídia, considerando o quanto se fala delas há mais de um ano. Dos textos que encontrei, só o do Olhar Digital menciona algo importante sobre as fases 1 e 2 das pesquisas clínicas: é nelas que os laboratórios decidem qual será a quantidade do antígeno presente em cada dose, e quantas doses deverão ser aplicadas, e em qual intervalo. UOL, Estadão, e mesmo páginas da Fiocruz e Butantan sobre o tema pulam esse detalhe.
E como essa decisão é tomada? Testando e verificando a reação que quantidades diferentes da vacina produzem no organismo, primeiro de animais, em estudos pré-clínicos, e depois de seres humanos, e então escolhendo a melhor das opções testadas. A dificuldade aqui, e o motivo pelo qual as vacinas não foram aplicadas na população assim que se demonstrou que eram minimamente seguras e que estimulavam resposta imune, é que ninguém sabe, a priori, qual a relação entre essa resposta imune e a proteção de fato contra a doença. Para isso, no momento, só temos o grande experimento conhecido como ensaio clínico de fase 3. Milhares de pessoas recebem a vacina, e são comparadas em se e como desenvolvem a doença a outras milhares num grupo de características tão semelhantes quanto possível, mas que recebeu a aplicação de um placebo, sem que nem elas, nem os experimentadores, saibam inicialmente quem recebeu o quê, de modo a isolar a ação da vacina de outras variáveis.
Só que a escolha do que testar não é uma ciência exata. A AstraZeneca descobriu na metade do caminho, por acidente, que aplicar meia dose primeiro poderia ser mais eficaz do que aplicar uma primeira dose completa.
Idealmente, as vacinas seriam testadas com o regime de dosagem calibrado mais precisamente, com base nos chamados correlatos de proteção, ou de imunidade, os biomarcadores associados à ativação completa do sistema imunológico contra a doença. A identificação desses marcadores é uma linha de pesquisa ainda em andamento, mas esse método de validação deve se tornar necessário em breve, porque em alguns meses será muito difícil encontrar milhares de pessoas que ainda não tenham sido vacinadas para formar amostras representativas da população e realizar ensaios clínicos para novas vacinas, que poderão ser mais efetivas, mais baratas, e exigir menos doses do que as que temos hoje.