“Vício” em Smartphone e Vícios do Jornalismo

Por causa da pandemia, a ciência, ou alguma ideia do que seja a ciência, vem sendo prestigiada em público de maneira inédita desde a corrida espacial, mais de cinquenta anos atrás. Ela passou a ser evocada como fonte de autoridade por comentaristas na TV, em colunas de opinião e editoriais, em campanhas eleitorais perto ou longe do dia do voto, em discussões e provocações nas redes.

No entanto, o contato da sociedade com a produção científica é sempre intermediado. Em seu formato original, de artigos acadêmicos, ela é direcionada a uma comunidade muito restrita e altamente especializada. É só através da mídia que uma versão simplificada dessa mesma informação pode chegar rapidamente a milhões de pessoas.

Em situações como esta da pandemia, a disseminação do conhecimento científico pode ter impacto imediato em políticas públicas e decisões individuais que fazem a diferença entre a vida e a morte para muitos de nós. E essa disseminação é também a principal arma contra a incessante campanha de desinformação movida pelo presidente da república, com o poder infelizmente concedido pela própria sociedade, com o dinheiro dos nossos próprios impostos, com a complacência do nosso próprio Congresso.

Então, se a ciência importa, e se o contato da maioria das pessoas com ela é sempre intermediado, não é curioso que a qualidade dessa intermediação seja tão pouco discutida?

Milhares de papers são publicados todos os meses, em todas as áreas de pesquisa. Quem decide quais deles vão chegar ao público, e quais são os critérios dessa seleção?
Quem decide o quanto o material original vai ser simplificado, e sequer existe aí a compreensão do que está sendo perdido a cada pedaço de contexto que é deixado pelo caminho?
Quais são as responsabilidades de quem faz divulgação científica? O que o público pode cobrar dessas pessoas e desses veículos?
Se alguém publica algo sem a devida apuração, até mesmo sem ser capaz de realizá-la por não conhecer um mínimo do assunto, isso pode ser chamado de jornalismo?

* * * * *

Segue um exemplo rotineiro da brincadeira de telefone sem fio que acontece entre um artigo científico e as versões dele que acabam chegando até o público.

No início de março, diversos veículos cobriram um estudo recém-publicado no periódico online Frontiers in Psychiatry. Seu título, traduzido, é: “A Associação Entre Vício em Smartphone e Sono: Um Estudo Britânico Transversal de Jovens Adultos”. Notem que, como usual na academia, ele apenas descreve o âmbito da pesquisa, não promete nem anuncia nenhum resultado. Essa informação é reservada para quem ler o próprio artigo e se informar do seu contexto.
Já os títulos das matérias, única coisa que vai ser lida por muitos no público geral, talvez até pela maioria das pessoas, são categóricos, destacando e comunicando certeza tanto sobre a proporção de afetados pelo suposto vício quanto sobre uma relação causal entre ele e problemas de sono.

E os textos reforçam essa interpretação:
Guardian: “Quase quatro em 10 estudantes universitários são viciados em seus smartphones, e uma pesquisa descobriu que esse hábito causa perturbações no seu sono.”
CNN Brasil, em matéria traduzida da matriz americana: “O vício em smartphones resulta em sono insatisfatório, de acordo com um novo estudo […].”

Infelizmente, o estudo não pode oferecer certeza sobre nenhuma das duas coisas. Ele sequer se propõe a isso. Aliás, ele até avisa que seus procedimentos não permitem tais conclusões.

O que o estudo oferece é o resultado da aplicação de um teste de vício em smartphone numa amostra voluntária de estudantes de uma universidade britânica (os tais ~40% de prevalência), mas ninguém sabe o quanto esse dado pode ser generalizado para universitários de outros lugares, que dirá então para pessoas da mesma faixa etária que sequer cursem ensino superior (a maior parte dessa população no Brasil). O estudo também demonstra a existência de uma associação entre uso do celular tarde da noite e o suposto vício com problemas de sono, mas não é capaz de determinar que os primeiros causem o segundo. É perfeitamente possível que sejam os problemas de sono que aumentem a probabilidade de pessoas usarem seus celulares até tarde da noite. É possível que vício e má qualidade do sono sejam ambos causados por um terceiro fator, não identificado aqui.

Esse é um problema recorrente no jornalismo científico. Por várias razões, o objetivo da maioria dos estudos não é oferecer respostas definitivas nem muito abrangentes sobre um tema, ainda que esse seja o objetivo último da própria ciência. O conhecimento tende a ser construído aos poucos, pela soma de evidências altamente específicas acumuladas em muitos estudos ao longo de anos. Mas isso não costuma impedir a mídia de atribuir caráter definitivo às pesquisas que divulga.

O que nos leva ao próximo ponto. Quando não há outros dados disponíveis, é inevitável extrapolar os que temos, às vezes vindos de um único estudo. Mas esse paper em questão nem de longe é o único com uma estimativa da prevalência de “vício” em smartphones entre jovens adultos. Então, por que a mídia o tratou como se fosse? Ele mesmo menciona outros para contextualizar seus resultados.
E há uma variação enorme nos resultados de cada pesquisa feita sobre isso ao redor do mundo. Se você não achar 40% um número simpático, pode escolher qualquer outro num buffet que vai de 0,4% a 64%. Você vai mais com a cara de 8%? Teve um estudo espanhol que concluiu que é esse o número de viciados. Seu número favorito é 33%? Tem outro na Tunísia com esse resultado.
E esses são só os estudos publicados até 2015, de lá pra cá houve muitos outros.
(Notem que não estou discutindo a qualidade deles, mas sim a falta de critério da mídia ao falar de um como se todos os outros não existissem.)

O Guardian parece ter inclusive esquecido que cobriu uma metanálise de 2019, dos mesmos autores de agora, que estimou prevalência de 23%. Curiosamente, nessa matéria de um ano e meio atrás eles diziam ser “cedo demais para chamar de vício o uso problemático de smartphones”.

E por que veículos americanos tomaram dados do Reino Unido como universais sem nem mencionarem que, um ano antes, outro estudo usando o mesmo instrumento, o SAS-SV, também com uma amostra de universitários, foi feito ali nos próprios EUA, obtendo prevalência de cerca de 20%?
Por que veículos brasileiros também fizeram isso, se em 2020 também tivemos aqui uma pesquisa nos mesmos moldes, que até resultou nos mesmos ~40%?

Vamos falar agora sobre os problemas de sono. A Veja e o tabloide The Sun mencionam que, entre as pessoas que supostamente teriam vício em smartphone na amostra, 68,7%, ou mais de dois terços, relataram não dormir bem. A CNN diz que “os alunos que relataram alto uso de telefones celulares também relataram má qualidade do sono”.
Mas, deixando de lado a questão da causalidade, essas matérias omitiram uma informação ligeiramente fundamental para entendermos corretamente esse dado: entre as pessoas que não foram classificadas como viciadas, 57,1% também diziam não dormir bem. Ou seja, a maioria das pessoas na amostra inteira relatou ter problemas de sono, independente de como eram classificadas quanto ao vício em celular. A presença dele está associada a aumento da prevalência de problemas de sono de 57,1% para 68,7%, e não de 0% para 68,7%, como muitos poderão interpretar.

Outro problema das matérias é não oferecer contexto algum para a associação entre o horário do último uso do celular e vício.
Guardian: “Estudantes que usaram seus celulares depois da meia-noite […] eram os que tinham maior risco de apresentarem vício no uso de seu aparelho.”
CNN: Cita uma frase do próprio paper, “Uso na madrugada também foi significativamente associado ao vício em smartphones, com o uso após 1 da manhã conferindo um risco três vezes maior”

Como apontei antes, a pesquisa coletou dados numa única universidade britânica, a King’s College London. Podemos simplesmente assumir que o horário médio em que seus estudantes vão para a cama seja igual ao de outros pelo resto do mundo?

Um gráfico de 2016 da Jawbone, fabricante de smartwatches e outros fitness trackers, hoje inativa, sugere que não. Cada ponto representa uma universidade americana, mais duas britânicas, e o horário médio em que seus estudantes vão dormir durante a semana. Ao todo, esse horário varia em uma hora e meia entre elas. Meia noite é tarde para os estudantes de algumas, mas ainda cedo para os de outras. Em algumas, na média, as pessoas vão dormir depois de uma da manhã.

Não dá para generalizar relação entre horário de último uso e vício sem saber a diferença no horário de dormir das respectivas populações. O que, por sua vez, tem relação com vários fatores. Os mesmos dados da Jawbone indicam que os horários variam conforme a posição da universidade num ranking de performance acadêmica, com estudantes em instituições de elite ficando acordados até mais tarde. Provavelmente relacionado a isso, existem associações entre inteligência e características do sono.

E quanto a própria ideia de “vício em smartphone”?

Nenhuma dessas matérias define “vício”. O que a mídia espera, exatamente, que o leitor entenda com essa palavra?
Passar mais do que uma certa quantidade de horas por dia usando celular? Não necessariamente. A relação que as pesquisas encontram entre tempo de uso e vício não é linear e nem estatisticamente significante. Nessa mesma existem pessoas consideradas viciadas com menos de duas horas diárias de uso, e pessoas que não são consideradas viciadas mesmo com mais de cinco horas, apesar da probabilidade de fato tender a aumentar com o tempo de uso.
Não suportar ficar longe do celular? Deixar de fazer outras coisas ou ter problema em se concentrar por causa dele? Na verdade, nenhum sintoma é necessário nem suficiente por si só. O “vício” é estabelecido pela presença e intensidade de uma quantidade de sintomas como esses e outros, de modo a interferir no funcionamento rotineiro do indivíduo. Mas quantos deles precisam estar presentes para caracterizar o tal “vício em smartphone” nunca foi estabelecido. Cada pesquisador é livre para testar a pontuação de corte que melhor se aplica aos seus métodos e à sua amostra.
E um detalhe: pela pontuação de corte sugerida e frequentemente utilizada no SAS-SV, você não precisa concordar que possui nenhum sintoma para ser classificado como “viciado”. Na escala, que vai de “discordo totalmente” (1 ponto) até “concordo totalmente” (6 pontos), basta responder que “discorda um pouco” de todos eles (3 pontos para cada resposta) para já obter a pontuação necessária. Precisamos de mais estudos para saber em termos concretos o que, exatamente, esses instrumentos estão avaliando, e o que seus resultados preveem.

O mais importante, como o paper informa bem no primeiro parágrafo, é que atualmente ninguém pode ser formalmente diagnosticado com “vício em smartphone”, porque essa categoria nosológica não existe em nenhum sistema de classificação de transtornos.
É meio surpreendente notar que tabloides sensacionalistas como Daily Mail e Daily Mirror tiveram o cuidado de informar seus leitores disso, enquanto veículos renomados como Veja, Guardian e CNN não se importaram com esse detalhe.
E nesse sentido, diferente do que afirmam o Guardian, a CNN americana, o Daily Mirror, nenhum teste usado para avaliar vício em smartphone é “clínico”, nem foi “validado” para esse uso. Até aqui, são todos utilizados em pesquisas que ainda investigam a natureza do problema.

Existem propostas para a criação do diagnóstico, mas ainda estamos longe de saber o suficiente para colocar isso em prática.
Só para dar um exemplo, uma avaliação de 78 testes publicada ano passado apontou que apenas dez deles haviam incluído a estabilidade temporal na definição de suas características psicométricas, e que até então ninguém havia investigado esse fator em um dos instrumentos mais populares, o SAS. Ou seja, ninguém sabe o que acontece quando você aplica esses mesmos testes nas mesmas pessoas uma segunda vez, após algum tempo. Se eles forem de baixa confiabilidade, a pontuação dos sujeitos vai variar além de uma margem razoável no reteste, e esses instrumentos não vão ter utilidade no diagnóstico.

Por uma questão de precisão conceitual, e até para evitar uma expressão atraente demais para sensacionalismos, para o oportunismo de políticos, militantes, e outros empreendedores morais, talvez devêssemos passar a falar mais em “uso problemático” do que em “vício”.

Como cita um paper de 2018 criticando esse próprio conceito e os usos que são feitos dele, “A compreensão limitada de qualquer nova tecnologia de informação e comunicação é frequentemente abusada pela mídia, que tira proveito das suspeitas que acompanham novos avanços tecnológicos para publicar notícias sensacionalistas sobre vícios e psicopatologias, que contribuem para a construção social de uma doença”.
Os autores desse paper também argumentam que, sendo o celular apenas o meio pelo qual pessoas acessam conteúdos, é inadequado focar tanto nele como objeto do suposto vício. Afinal, ninguém fala em “vício em seringas”, o meio, já que temos claro que elas são só o veículo para a heroína, o objeto. Ninguém fala em “vício em garrafas”, já que o objeto é o álcool. Então, se um jogador patológico usa o celular para acessar a internet para participar compulsivamente de jogos de azar em que acaba perdendo muito tempo e dinheiro, o vício dele é no celular? Na internet? Ou nos jogos?

Algumas pessoas passam a maior parte do tempo no celular jogando video games, outras lendo e postando em redes sociais, ou trocando mensagens. O uso problemático provavelmente tem características distintas dependendo do objeto desse uso, e os estudos sobre isso tudo ainda estão só começando. Mas vai ser no mínimo estranho acabarmos patologizando a interação social online, se não fazemos o mesmo com as interações cara-a-cara. Um paper até satiriza essa duplicidade, desenvolvendo um “questionário para vício em amizades offline” que é tão rigorosamente validado quanto o SAS-SV e similares, incluindo até a rara confiabilidade de teste-reteste. O que mostra que um instrumento pode ter todas as credenciais em ordem e ainda assim ser completamente inútil, se perdermos de vista o que realmente estamos avaliando, e com qual finalidade.
Certamente não está descartada a possibilidade de que o uso problemático seja mais resultado do que causa de outros problemas. Mesmo Jean Twenge, a mais notória proponente na academia do efeito nocivo de telas em geral, com um histórico de afirmações sensacionalistas para a mídia, conclui numa revisão recente de literatura apenas que “estudos longitudinais e experimentais sugerem que pelo menos alguma causalidade parte do uso de mídias digitais em direção ao menor bem-estar”. Uma afirmação bastante modesta, considerando o barulho todo.

Enfim. Onde eu quero chegar é: o peru do “vício” em smartphone ainda está muito cru, e a mídia insiste em tirar dele do forno antes da hora.

* * * * *

Como já deve ter ficado claro, o que chegou ao público através da imprensa não é bem a mesma coisa que os autores da pesquisa escreveram.

Um provável motivo para isso é simples: a maioria dos jornalistas e editores responsáveis por aquelas matérias não deve sequer ter lido o paper original. Como muitas das matérias foram publicadas quase simultaneamente na manhã de 2 de março, com trechos parecidos e depoimentos idênticos dos pesquisadores, eu suponho que foram baseadas em um dos press releases que as grandes universidades nos EUA e Inglaterra, com departamentos de relações públicas bastante ativos, costumam enviar para a mídia, e que oferecem conteúdo praticamente pronto para publicação. Isso explicaria também o motivo de terem “escolhido” cobrir esse paper e sequer mencionarem outros, talvez nem saibam que existem outros.
Jesse Singal, ex-editor da seção de ciências do comportamento “Science of Us” da New York Magazine, e autor de um livro recém-lançado sobre modismos científicos que são mais hype e marketing do que qualquer outra coisa, explica essa situação:

Se os responsáveis pelas matérias chegaram a ler a pesquisa, mas não estão familiarizados com a literatura acadêmica com que ela interage, como parece ter sido o caso da CNN e Guardian… Bizarramente, isso fez com que produzissem matérias até piores do que os tabloides.
Já na Veja, meu palpite é que só leram alguma dessas primeiras matérias e fizeram um resumo de segunda mão, assim como outros veículos que tocaram no assunto mais tarde.

A essa altura, alguém poderia dizer, “mas se matérias baseadas num release de universidade distorcem a pesquisa, então o problema está no release, não nas matérias”. Ao que eu respondo: Nenhum veículo jornalístico que se preze publica o release de alguma empresa sobre um produto novo como se fosse uma matéria própria. Por que tantos fazem isso com releases de universidades sobre pesquisas científicas, algo tão mais sério e complexo? Como se essas instituições e esses pesquisadores não tivessem também interesse em se promoverem, se necessário exagerando as qualidades dos seus próprios produtos.

Repito aqui as perguntas que fiz lá em cima:
Quais são as responsabilidades de quem faz divulgação científica? O que o público pode cobrar dessas pessoas e desses veículos?
Se alguém publica algo sem a devida apuração, até mesmo sem ser capaz de realizá-la por não conhecer um mínimo do assunto, isso pode ser chamado de jornalismo?

Leave a Reply