“Todo Mundo É Psicopata”

Ao longo dos anos, a mídia criou um subgênero bastante pitoresco de jornalismo científico, publicando uma série de matérias sensacionalistas sobre a caracterização de psicopatas e supostos truques para identificá-los.

Elas chegam até a serem engraçadas, se deixarmos de lado por um momento o fato de que distorcem a ciência e desinformam o público, exatamente o contrário do que deveriam fazer. Leiam alguns dos títulos em sequência e me digam se não parece piada de comédia nonsense, tipo “Corra Que a Polícia Vem Aí”.

O problema desse tipo de texto é que ele inverte a relação entre jornalismo e ciência: ao invés de servir como instrumento de divulgação de pesquisas científicas para o grande público, o que implica um esforço em ser fiel às intenções dos pesquisadores, a imprensa passa a tirar proveito daqueles trabalhos, fazendo por conta própria afirmações exageradas e incorretas sobre suas conclusões para chamar mais atenção, e consequentemente afastando o leitor da compreensão de como a ciência realmente funciona.

Vejam só um exemplo.

Em setembro de 2017, vários veículos da grande mídia, e até sites dedicados à divulgação científica, repercutiram uma pesquisa associando gosto musical à psicopatia. Os títulos eram incisivos: as músicas que a pessoa prefere seriam informação suficiente para você suspeitar, ou até mesmo saber, que ela é uma psicopata. Seu colega vive ouvindo “Lose Yourself”, “No Diggity”? Cuidado com ele.

Vamos lá ler o artigo dessa pesquisa revolucionária. …opa. Xi. Não existe artigo. De acordo com o responsável pelo trabalho, o psicólogo e professor Pascal Wallisch, a pesquisa sequer estava pronta (“the results are preliminary and unpublished, but the scientists are sufficiently intrigued to launch a major study”). Até hoje, mais de três anos depois, ela não foi publicada. Não existe nenhuma referência a ela no mundo acadêmico.

Infelizmente, é comum que a mídia fale sobre pesquisas sem que ninguém as tenha lido ou esteja informado o suficiente para escrever de maneira responsável. Mas, aqui, sequer havia algo para ser lido. Ninguém tinha como se informar melhor sobre os resultados, se o experimento e a análise dos dados foram adequados. Tudo o que foi dito se baseou na mesma matéria do Guardian, que se baseou no depoimento informal do autor.

Todos esses veículos incitaram julgamentos muito graves (“As músicas que os psicopatas mais gostam”, “Quer identificar um psicopata?”, “Se o seu colega de trabalho gosta deste tipo de música, fique de olho nele”), que ainda distorciam o pouco que se sabia, já que o pesquisador nunca afirmou a capacidade de diagnosticar alguém só pelo gosto musical. De onde saíram aqueles títulos? Que tipo de jornalismo é esse?

Algumas matérias tomaram o cuidado de abrandar o que é dito nos títulos (“consider some caveats to the research”, “further tests are needed, and they want to conduct a larger study”, “caso seja possível identificar um gosto musical em comum”). Só que eles dão o tom, e frequentemente são a única coisa que as pessoas leem. Uma pesquisa estimou que 59% dos links mencionados e compartilhados no Twitter jamais são clicados. Se sabemos que título e linha fina são tudo com que tantas pessoas vão ter contato, não dá pra fazer clickbait, desmentir no corpo do texto, e fingir que está tudo bem.

O próprio Wallisch escreveu sobre o episódio, expressando surpresa com o interesse da mídia e com a maneira como seu trabalho e suas palavras foram tratados. Tradução livre de um trecho:

Então, é basicamente uma brincadeira de telefone sem fio: Começa com o que nós realmente fizemos. Depois, vem o que o veículo com que conversamos acha que nós fizemos. O que os veículos que copiaram do veículo original acham que nós fizemos. O que as redes sociais acham que nós fizemos. O que as pessoas entendem que nós fizemos. Aparentemente, algo se perde em todos esses elos, ou eles são pouco confiáveis.

[…]

Divulgar é necessariamente igual a vulgarizar?

* * * * *

Enfim, o que foi que aconteceu aqui? Entre as inúmeras opções que tinham, já que o tempo todo são realizadas pesquisas sobre todo tipo de coisa, veículos de imprensa de varios países se interessaram por uma pesquisa específica, que não estava pronta, e que os próprios autores não consideraram relevante o suficiente para ser formalmente publicada.
Por que essa pesquisa? Ninguém sabe como foi feita, portanto ninguém sabe a força das suas conclusões. Ela teve zero repercussão no meio acadêmico.

Sendo assim, o maior atrativo não deve ter sido jornalístico, mas econômico, tanto literalmente quanto no sentido da “economia da atenção”: a ideia da pesquisa dava margem para sensacionalismo num tema de interesse popular, portanto tinha potencial para gerar tráfego com mínimo esforço.

Outras pesquisas que poderiam ter rendido melhor jornalismo foram ignoradas. Não só o trabalho dos pesquisadores foi explorado e distorcido, ainda que eles tenham ganho alguma projeção com isso, como o público foi explorado na proporção em que confiou no que leu. Tratando a ciência como uma coleção de curiosidades desencontradas, o que essas matérias fazem é desinformar. Sobre a natureza da psicopatia, sobre o grau de certeza com que é possível determinar características individuais ou fazer diagnósticos a partir de comportamentos corriqueiros, e sobre a realidade da pesquisa científica.

E tudo isso passou em branco. Como é a regra no jornalismo científico na grande mídia.

Como eu disse antes, e vou seguir repetindo: se a ciência importa, e se a relação do público com ela é sempre intermediada, não é estranho que a qualidade dessa intermediação seja tão pouco discutida?

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