Quem Vai Ficar de Fora?

Substâncias psicodélicas como cetamina e psilocibina são a maior promessa de avanço nos medicamentos para depressão em mais de trinta anos. E a qualquer momento podem surgir ensaios clínicos de fase 3 para determinar a sua eficácia, visando a regulamentação do uso geral, além do uso já previsto da escetamina contra depressão resistente a outros tratamentos.

Eu tenho uma curiosidade técnica sobre esses estudos futuros: eles vão continuar usando critérios de exclusão que podem deixar de fora mais de 80% dos casos reais de depressão, como vem sendo feito até aqui?

Estudos de eficácia precisam determinar se o efeito observado foi realmente causado pelo remédio, e não por outros fatores, o principal deles na psiquiatria sendo o efeito placebo. Então, um grupo recebe o remédio, outro recebe placebo, e os resultados são comparados, e o efeito real é a diferença entre e um e outro, como nos estudos das vacinas de COVID-19.

No entanto, outra medida para diminuir a chance de contaminação dos resultados é a exclusão de sujeitos que trariam variáveis de confusão para a amostra. E aqui é que a coisa pega.

Há décadas os estudos de eficácia de antidepressivos excluem uma grande proporção de sujeitos que, apesar de terem o diagnóstico de depressão clínica, ao mesmo tempo são considerados mais suscetíveis ao efeito placebo, por critérios com embasamento empírico questionável (https://bit.ly/3grrv42, https://bit.ly/3vpIfgg).

Então, são deixadas de fora variadas combinações de pessoas que têm depressão há muito pouco tempo (também com maior chance de remissão espontânea), mas também por tempo demais. Pessoas com depressão leve. Com transtorno de personalidade, de uso de substâncias. Ansiedade social. Transtorno obsessivo-compulsivo. E outros. Também são excluídas certas comorbidades psiquiátricas e médicas pelo risco que o remédio testado pode oferecer, mas é um assunto à parte.

O resultado disso é que as pesquisas de eficácia acabam sendo realizadas com amostras representativas de uma depressão “pura”, mas não da variedade de casos reais que são encontrados de fato na clínica. E a possibilidade de generalização dos dados obtidos ali fica em questão.

A única discussão sobre design de ensaios clínicos para os psicodélicos que encontrei foi este artigo, que não se aprofunda nesse tema específico. Mas eu especulo que eles vão ter critérios de exclusão mais relaxados, por dois motivos:

Primeiro, o foco dos estudos tem sido casos resistentes aos tratamentos tradicionais, e é difícil ignorar a predominância das comorbidades a partir daí.

Segundo, até o momento, as pesquisas têm tido pouco envolvimento da indústria farmacêutica, diferente de como foi com os SSRI. E é provável que uma das razões para aqueles critérios de exclusão abrangentes fosse o desejo dessas empresas de obter resultados mais favoráveis para os remédios que haviam criado e dos quais esperavam grandes lucros. Mas, como mencionei antes, essas exclusões não eram necessariamente baseadas em evidências, e há dados sobre algumas sugerindo que não fazem muita diferença na eficácia geral, talvez até a diminuam.

No entanto, se o corpo de pesquisas de psicodélicos for realizado em condições consideravelmente diferentes do corpo de pesquisas já existentes dos SSRI, podemos acabar tendo dificuldades em usar os dados destas últimas para comparar os resultados das duas categorias de antidepressivos. Do mesmo modo que temos dificuldades em comparar a eficácia de vacinas com estudos de fase 3 utilizando metodologias diferentes, realizados em populações diferentes.

Leave a Reply